7 de fevereiro de 2015

[DO ARQUIVO] O corvo e o espantalho

O corvo tinha as suas preocupações. A cabeça estava cheia de ideias, de sonhos entre o puro e o perverso, e nenhum deles podia ser concretizado no imediato. Tinha, mesmo assim, de fazer pela vida. As crias precisavam de alimento, e com a seca, tinha mesmo de se aventurar para áreas que não conhecia tão bem. Nos campos que havia por ali tinham começado a aparecer homens, que o aterrorizavam. Homens estranhamente imóveis, certo; mas sempre que o corvo via um deles imaginava-o de arma em punho e recordava-se do ruído ensurdecedor de explosão que precedia uma chuva de chumbos que queimavam as penas e rasgavam a pele, ou pior, que tiravam a vida a tudo o que mexesse. O corvo mantinha distância dos homens. Mas aquele, naquele terreno em particular, parado de braços abertos, olhar perdido sobre terra recentemente lavrada, intrigava-o. Os olhos do homem estavam mortos, e, olhando com mais atenção, a cara e as mãos pareciam feitas de feno. Palha amarelada, aliás, bastante seca pelo sol abrasador.
O corvo começou a pensar como o homem devia estar a sofrer. Sozinho, isolado do mundo, olhos negros como breu em vigília permanente sobre o campo que lhe coube em sorte. Péssima profissão, a de espantalho – sem ninguém para conversar, sem um amigo com quem desabafar a dor dos dias que se sucediam. Cada dia que sobrevoava o homem e olhava para ele, sempre na mesma posição, braços paralelos ao chão como quem espera um abraço que não vem, o corvo tinha mais vontade de vencer o seu pavor de homens e aproximar-se. Até que um dia não resistiu: voou por ali, pousou na árvore mesmo ao lado, e, com um último mas corajoso salto, aterrou-lhe no ombro.
O homem, impávido e sereno, não moveu um músculo. Não que ele tivesse músculos, claro – era feito de palha. Mas a verdade é que não esboçou qualquer movimento. Não pestanejou, não respirou, não estremeceu. O corvo deu-lhe uma bicada amigável no ombro, mas o homem não reagiu, e manteve-se, olhar fixo no horizonte, braços acolhedores abertos ao máximo, na mesma posição em que sempre esteve. O corvo levantou voo, satisfeito consigo próprio: tinha conseguido ultrapassar o medo, e além disso tinha ajudado alguém que claramente precisava de saber que não estava totalmente sozinho.
A partir daí, o corvo introduziu este ritual na sua rotina. Todos os dias, à mesma hora, passava por aquele campo, aproximava-se do homem, pousava-lhe no ombro e dava-lhe uma leve bicada amigável. Um pequeno toque, um sinal de que havia alguém no mundo que se preocupava, que estava ali para o que fosse preciso. Um lampejo na escuridão para mostrar que, lá por ser feito de palha, isso não queria dizer que ele precisasse de se sentir abandonado.
E assim passaram muitos dias, vários meses, o corvo não sabia. Era só um corvo: a noção do tempo a passar não era a sua especialidade.
Até que, de uma das vezes que pousou no ombro do homem, o corvo sentiu algo de diferente. Um brilho novo nos olhos, que contrastava ainda mais com a palidez da palha estragada pelo calor. Um ligeiro, quase impercetível, estremecer do braço. O corvo não cabia em si de alegria: finalmente o homem ia deixar de ser tímido! Ia conversar com ele, desabafar os seus problemas, abrir o seu coração! Esperançado numa amizade verdadeira que começaria ali, o corvo esticou as penas do rabo e endireitou o bico. A última coisa que se lembra é do braço do homem, numa velocidade incrível, a bater-lhe em cheio no corpo. Foi de encontro à árvore com toda a força e tudo ficou escuro.

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