22 de abril de 2015

[Hoje escrevi] A última visita

O silêncio do quarto era apenas entrecortado pela respiração fraca e pelos ocasionais apitos agudos das máquinas. As paredes brancas presenciavam os últimos momentos daquela vida. Não tinha sido uma vida má. A mulher, bastante idosa, deitada de costas na cama, com máscara de oxigénio e vários fios aos quais o seu frágil coração se agarrava, lembrava-se de muito. Não de tudo, que a idade não ajudava à perfeição da memória, mas de muito. Tinha trabalhado uma vida inteira e tinha-se esforçado para ser competente e de confiança para todos os que com ela contavam. Nunca tinha tido muito sucesso financeiro, mas os vários empregos em escritórios que tinha coleccionado como cromos colados numa caderneta remuneraram-na suficientemente bem para que nada faltasse em casa. O marido, já falecido há oito anos, tinha tido uma carreira semelhante, e não lhes tinha faltado diversão. Céus, como se tinham divertido! Agora que sentia que o fim se aproximava, tinha a estranha sensação de que algo não estava completo. Como se um qualquer objectivo em tempos formulado mas há muito esquecido tivesse ficado por marcar como realizado. Mas, ao mesmo tempo, sentia que a vida dela tinha sido importante. Que ela tinha feito a diferença. Mas não conseguia apontar exactamente porquê - em que é que uma trabalhadora de escritório cujo principal mérito era teclar extremamente bem poderia fazer a diferença? E cansava-a, deixava-a exausta, tentar arranjar explicação para isso, e desistia, e acabava por atribuir essa sensação de real importância à soberba, uma réstia de assoberbada vaidade que lhe ocupava uma parte do velho coração. Os cabelos, brancos e frágeis mas outrora ruivos e vistosos, tinham presenciado toda a sua vida, e, com vaidade ou sem ela, a verdade é que tinha valido a pena. Por muito ou pouco que fizesse diferença no mundo, tinha valido a pena.

Do seu lado direito, um som algures entre um aspirador e uma ventoinha. Talvez alguma bomba de ar que alimentava as máquinas que a mantinham a respirar. Ao fim de poucos segundos, parou. A custo, a mulher virou a cabeça para o lado de onde o som tinha vindo e abriu os olhos. Estava muito fraca, custou a focá-los. Ao lado do armário parecia haver um outro, maior, de madeira escura. Azul, talvez. Ela não se lembrava de terem colocado ali um armário novo, mas a verdade é que dormia a maior parte do dia, podiam tê-lo trazido sem que ela se tivesse dado conta. Mais estranho era o que agora acontecia: a porta do armário abria-se com um rangido. E de lá de dentro saía um homem...
O homem era magro e de estatura média. Cabelo grisalho e rosto adunco, algo envelhecido. Sobrancelhas furiosas, como se lhe quisessem saltar da cara e atacar quem não fosse suficientemente esperto para lhe sair da frente. Mas, ao mesmo tempo, os olhos, muito mais velhos que o resto da face, eram corajosos mas ternos, cheios de compaixão. Era um bom homem, certamente. Vestia um fato escuro simples, mas com um estranhamente espampanante forro vermelho que espreitava pelo casaco desabotoado. Botas robustas e camisa branca. Como um ilusionista, mas, apesar de tudo, dos mais discretos.
O homem avançou dois passos na direcção da cama. Parecia algo hesitante. Um vulto feminino espreitou de dentro do armário - uns cabelos compridos, uma saia vermelha aos quadrados - ou será que teria sido uma ilusão de óptica provocada pelos seus olhos doentes? O homem, reparava agora, tinha um papel na mão, que pousou no pequeno móvel metálico que fazia as vezes de mesa de cabeceira. A idosa já não iria ter como o ler, mas, se o conseguisse, iria constatar que era uma declaração de óbito. A sua. Datada do dia seguinte. Causa de morte: "Causas naturais - paragem cardíaca não identificada".
O homem aproximou-se da cama. Ela tentou lembrar-se se o conhecia. A cara não lhe era estranha. O seu velho cérebro tentou fazer todas as ligações que conseguiu, mas teria certamente sido um daqueles rostos com quem nos cruzamos mas que não registamos. Ele parecia ter algo para dizer, mas não conseguia decidir-se a começar a falar. Em vez disso, com um esgar no rosto como aqueles que fazemos para conter uma lágrima, tirou do bolso um estranho objecto. Era como uma caneta muito volumosa, e tinha uma luz na ponta que se acendia quando ele pressionava um botão. Apontou o objecto para ela, e ouviu-se um zunido metálico. Em seguida, virou a sua atenção para as máquinas, usando o objecto como se de um telecomando se tratasse, apontando e pressionando, zumbindo aqui, iluminando ali, de vez em quando fazendo uma pausa para olhar atentamente para ele. Agora com tristeza resignada estampada na face, o homem aproximou-se novamente dela.
- Minha velha amiga - disse ele, - chegou mesmo a tua hora. Vou-te deixar o único presente que te posso oferecer.
Baixou-se um pouco, esticou a mão direita e aproximou-a da sua cara. A idosa não conseguiu reagir. Tinha medo, mas algo a tranquilizava também.
- Adeus, minha querida. Descansa em paz.
Com dois dedos, o homem tocou-lhe ao de leve na testa. E algo de espantoso aconteceu. Subitamente lembrava-se. Lembrava-se de correr pelas ruas de Londres vestida de noiva. De perseguir pequenas e adoráveis criaturas feitas de gordura. De salvar pessoas do vulcão em Pompeia, de visitar a maior biblioteca de todas e fugir das sombras, de automóveis que expeliam gás mortífero, de ter algo horrendo agarrado às costas, de uma rapariga loira que insistia que ela, Donna Temple-Noble, era a mulher mais importante da história do Universo, e de salvar tudo e todos com os seus dedos rápidos numa estranha consola alienígena repleta de botões. Que aventuras fabulosas! Sim, agora lembrava-se de tudo! Mas que dor era aquela? Que sensação aguda lhe tolhia o cérebro, como se as ideias queimassem? Como se conhecimentos magoassem e lhe fizessem explodir a cabeça? Doía, e queimava, e doía cada vez mais, e queimava cada vez mais, e era insuportável, era agonia, dor, dor pura, lancinante e aflitiva... e subitamente tudo parou e Donna deixou de respirar. As máquinas passaram a emitir um silvo contínuo.
A lágrima nos olhos do homem caiu mesmo. Virando as costas à sua amiga, agora já morta, dirigiu-se, soturno, para o armário azul. De lá de dentro, a mão jovem da sua companheira de viagem afagou-lhe o rosto.
- Já está, Clara. Assim, ela não morreu sem se lembrar de tudo o que fez por todos nós.
Clara concordou, acenando em silêncio. O homem entrou no armário e fechou a porta atrás de si. Com o mesmo barulho vivo, como se de uma respiração forte se tratasse, o armário desapareceu.

Em cima do móvel de metal, a folha de papel mudou subtilmente. A data da certidão de óbito antecipou para o dia de hoje. Na linha da causa de morte agora podia ler-se: "Causas naturais - Paragem cardíaca e cerebral não identificada".

Sem comentários: