4 de fevereiro de 2015

[DO ARQUIVO] O espantalho e o corvo

O homem de palha não se mexia. De pé, de braços abertos, olhar perdido sobre um campo cultivado com trigo. Chapéu de palha na cabeça, roupas velhas, passava os seus dias a ouvir o som cortante do vento que lhe fustigava as mãos, única parte do corpo de palha que estava a descoberto. Os olhos negros como breu percorriam a paisagem campestre sem que alguma vez tivessem pestanejado, um olhar infinito e intenso, protetor até, atento a todos os movimentos, reparando em cada pequena alteração na rotina.
Era essa, aliás, a sua função: zelar pela paz naquele campo de trigo. Assegurar-se que não havia distúrbios na contínua quietude do lento ciclo do cultivo. Sob a sua guarda não se daria qualquer incidente que perturbasse o dia-a-dia, de sol a sol, em que a natureza seguia o seu ritmo, indiferente às pessoas, às máquinas, ao próprio guardião que tudo vigiava.
Todas as manhãs, mais ou menos à mesma hora, pousava-lhe um corvo sobre o braço direito. Já tinha entrado na rotina: o corvo chegava, debicava-lhe um pouco o ombro, como quem cumprimenta amigavelmente, ficava uns minutos a apreciar a brisa matinal, e voltava a levantar voo, para regressar no dia seguinte.
O homem de palha começava a estranhar qualquer coisa naquele ritual diário. A verdade é que lhe sabia bem a companhia, mas o corvo parecia nunca lhe ter dado grande atenção. Chegava, dava a sua bicada amigável, e depois saía sem uma palavra, sem um piar ou um cacarejar, voando negro pelo céu recém-iluminado pelo nascer do sol. E o homem de palha queria um pouco mais. Queria um amigo com quem falar, queria alguém interessado nas pequenas e corriqueiras novidades que salpicavam o interminável tédio que eram os seus dias. E as bicadas no ombro cada vez doíam mais, mesmo que o que doesse não fossem as bicadas mas sim o silêncio e desinteresse que se lhes seguiam.
Até que uma vez, o homem de palha resolveu mexer-se. Passou toda a noite em claro, a fletir os músculos de palha, a esticar os tendões de palha, a dobrar as articulações de palha. Sentia-se em forma, capaz de movimentos rápidos mas graciosos, fortes mas precisos. Desta vez, o corvo ia prestar-lhe atenção. Desta vez não iria levantar voo sem um som que fosse. E, à hora do costume, lá veio a ave. Pousou, como de costume, no braço do homem de palha. Rápido como uma bala, sem que o corvo conseguisse esboçar reação, com o outro braço atingiu-o com toda a força, projetando-o violentamente contra uma árvore próxima. O impacto esmagou instantaneamente o crânio do pássaro, que ficou inanimado no meio do chão, muito provavelmente morto.

O homem de palha voltou a colocar-se na sua posição habitual: de pé, de braços abertos, olhar perdido sobre o campo cultivado com trigo. Nos próximos dias ia sentir falta das bicadas no ombro, mas acabaria por se esquecer e voltar a apreciar a solidão.

Sem comentários: